13 de setembro de 2017

Terra Guarani do Jaraguá e preservação ambiental X negócios privados


Emerson Souza e Silvia Beatriz Adoue

A anulação da demarcação da Terra Indígena (TI) Guarani do Jaraguá, no estado de São Paulo, pela Portaria 683 do Ministério da Justiça (MJ), de 21 de agosto de 2017, apresenta-se à opinião pública como uma trapalhada administrativa: "um erro" do MJ, que tinha aprovado a TI sem participação no processo do Estado de São Paulo. Esta ação ameaça o futuro de várias aldeias e, ao mesmo tempo, põe em risco a área de preservação na qual elas se localizam. Por trás dessa aparente trapalhada, porém, há interesses privados, de olho gordo no potencial campo de negócios que se abre para os ramos imobiliário, florestal e turístico.

Trata-se do que tem de mais podre na esfera jurídica. É passar por cima de uma decisão anterior para atender aos interesses da especulação imobiliária, da terceirização dos parques, entre outras questões que envolvem muita dor e sofrimento aos nossos queridos irmãos indígenas. Uma característica do governo atual é atuar em conjunto com forças conservadoras que se mobilizam entre estado de São Paulo, a capital paulista e o Governo Federal. Ações conjuntas amparadas na continuidade genocida e etnocida de comunidades indígenas como a do Jaraguá. Vale ressaltar que não se esgota e abre precedente para anulações em outras escalas, em nível nacional. O que surpreende juristas, educadores, antropólogos, educadores é a frieza e o gosto pela morte de povos indígenas em todo Brasil.

A TI do Jaraguá comporta um pouco mais de 533 ha entre os municípios de São Paulo e Osasco. Auto-organizados em 5 aldeias (Pyau, Itakupé, Itawerá e Ytu, Itaendy), vivem entre 700 e 900 indígenas. Há na TI um Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI), escola municipal, com 170 crianças de até 6 anos, e a Escola Djekupe Amba Arandy, de ensino fundamental, médio e educação de jovens e adultos, que recebe 250 crianças e jovens. Há também uma Unidade Básica de Saúde, a qual frequentam semanalmente de pediatra e ginecologista. Mas o coração da Terra Guarani é a casa de reza (Nimungarai).

O modo de ser guarani se contrasta com o modelo europeu que se busca para o Brasil. Uma breve visita ao local permite essa distinção. A língua é outra, a religião é outra, a vida é simples e ligada à espiritualidade deste povo, a vida é ócio, não é negocio. Esse é o grande diferencial do modo de ser guarani. Diferentemente do que se pensa com o modelo liberal para a vida da população. O guarani vive sua cultura, ensina e dá dicas de como é possível se viver de outra maneira na cidade de São Paulo.
O povo vivia exprimido numa área demarcada de 1,766 ha, insuficiente, por seu tamanho e características, para o cumprimento do artigo 231 da Constituição Federal, segundo o qual as terras indígenas devem ser adequadas para "suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições" (§ 1º, 1988). Em 29 de maio de 2015, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinou a Portaria Declaratória nº 581 que demarca a área maior, na qual as aldeias estão assentadas. Essa terra coincide em parte com o Parque Estadual do Jaraguá.
O Parque Estadual do Jaraguá tem 492,68 ha e está localizado no município de São Paulo, na divisa com o município de Osasco. A toponímia já deixa claro que se trata de um território ancestral guarani. No final do século XVI, a área foi explorada para extração de ouro, chegando a ser chamada de "Peru-do-Brasil". E só na segunda metade do século XIX, já esgotada a riqueza aurífera, a terra foi destinada para a produção de café. Quando o ciclo do café já havia declinado, a fazenda Jaraguá foi comprada pelo Governo do Estado de São Paulo. Porém, o Parque Estadual só foi criado em 1961. Hoje é Unidade de Conservação de Proteção Integral e sua modalidade é "parque". Isto é, está aberta ao público, com restrições. O órgão responsável pela gestão é a Fundação Florestal.
Com a terra demarcada, os Guarani procederam a recuperar a o bioma de mata atlântica, já que grande parte da área estava coberta de eucaliptus, espécie utilizada, erradamente, em muitas unidades de preservação como floresta secundária. O eucaliptus é espécie exótica, que não contribui à preservação dos mananciais. Porém, a Fundação Florestal tem reflorestado em Unidades de Conservação e Proteção Ambiental do estado com eucaliptus e pinus, que consomem recursos hídricos em grande volume e concorrem (com vantagem) com outras espécies pelos nutrientes. Ausentes outras espécies, a cadeia alimentária própria da mata atlântica fica inviabilizada. Não é a única trapalhada cometida na Unidade de Conservação: a área de Jaraguá não é um território contínuo, já que está atravessada pelas rodovias Anhanguera e Bandeirantes, e pelo Rodoanel Mário Covas. Não bastasse a crueldade anterior junto aos Guarani, estas estradas buscaram diminuir o território indígena atendendo exclusivamente aos interesses do grande capital. Que destrói, desumaniza, desequilibra, mata.
Se observarmos o mapa da distribuição das TI Guarani (GUARANI RETÃ, 2008), podemos conferir que ela coincide com áreas preservadas que contribuem para a recarga do Aquífero Guarani. Isto é, a presença do povo, com seu nhanderekó(modo de vida guarani) garante a preservação e a expansão da mata atlântica, com seus cursos de água e as reservas hídricas.
Em 7 de junho de 2016, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou o Projeto de Lei 249 apresentado em 2013 pelo governador Geraldo Alckmin e sancionada por ele como Lei 16.260, que autoriza a concessão de 25 áreas florestais para que empresas privadas as possam explorar retirando madeira, resinas, outros subprodutos florestais, assim como aproveitando seu potencial turístico e ecoturístico. Bingo! As peças do quebra-cabeça se encaixam com esse dado. A TI do Jaraguá desperta especial cobiça no setor imobiliário e turístico, pela sua proximidade com a megalópole e as importantes rodovias que a atravessam. As áreas próximas se eriçam de prédios e condomínios de luxo se expandem, com potencial impacto sobre a unidade de preservação. A intenção de terceirizar a gestão das Unidades de Conservação também é um filão que transfere recursos públicos para a empresa privada.
Afinal se pensar a venda de ingresso para a entrada da população é o sonho liberal. "Enxugar o Estado", dizem. Virar produto, mercadoria, vender a natureza. Para a população indígena não existe meio ambiente. "Meio" é nada para os povos indígenas. Natureza é a palavra que está em sintonia com a vida e sobrevivência deste povo. Povo marcado há séculos pelos Bandeirantes. Basta buscar em São Paulo referencia aos mesmos e teremos a certeza de que São Paulo é historicamente formado pela injustiça que hoje assola o Jaraguá. Raposo Tavares, Fernão Dias, Borba Gato, Anhanguera. Palácio dos Bandeirantes. Apenas nos dá a pista de qual é a próxima estátua no alto do Pico do Jaraguá. Saldando a morte de mais um povo. Afinal o ouro que buscavam aqui. Não existe mais. E é a terra como mercadoria. E a canetada do governo atual.
O risco é para a comunidade afetada e para o ambiente. Com o argumento torto de uma contradição de caráter administrativo, fere-se a Constituição Federal e gera-se um antecedente para reverter demarcações já consolidadas. Isto acende o alarme e nos desafia na nossa condição de cidadãos e de pesquisadores, trabalhadores da ciência, a um posicionamento firme em favor a demarcação da Terra Guarani, que coincide com a defesa da abundância da mata atlântica, que já foi gravemente ferida ao longo da história da colonização. É o nhaderekó que garante a abundância.
O Jaraguá é Guarani. O Jaraguá é Itakupé, Pyau, Ytu, Itawerá, Itaendy.
O Jaraguá é Guarani. Não é dos Titus e Bandeirantes do século XXI.


Referências bibliográficas
CONSELHO DE ARTICULAÇÃO INDÍGENA, Carta dos Indígenas de São Paulo, São Paulo, Encontro de Formação abril de 2009.CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Brasília: Congresso Nacional, 1988.
GUARANI RETÃ. Laboratório de Geoprocessamento/Instituto Socioambiental, 2008.SCHADEN, Egon. Aculturação indígena. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1969.---------. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: EPU/Edusp, 1974.

Sobre os autores:

Emerson Souza é Guarani, com formação em Ciências Sociais, professor de Sociologia da rede Estadual de Educação.

Silvia Beatriz Adoue é professora da UNESP de Araraquara e da Escola Nacional Florestan Fernandes, e representa a UNESP no Conselho Estadual para os Povos Indígenas de São Paulo (CEPISP).

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